Pra que rimar amor com dor?
Pra que rimar amor com dor?

Pra que rimar amor com dor?

Eu fui vítima de assédio. Me colocar como vítima foi difícil. É difícil. Dizer em voz alta que fui vítima dói. Mas a dor começou a cessar quando entendi que ser vítima não é crime, não é minha culpa e não é feio.

Vivemos um tempo em que ser vítima é ser sujo, me parece. Talvez porque muita gente se vitimize indignamente. Muita gente se coloca na posição de vítima quando não é e isso macula o sentido real da palavra. Que tempos difíceis…

Meu processo interno de cura e recuperação está caminhando bem, finalmente. Durante cerca de 18 meses eu fiquei destruída, sem me reconhecer, sem me achar, sem me encontrar, sem rumo. Durante todos esses meses, passei pela raiva, pela dor, pela angústia, depressão, amor, culpa, medo, ódio, revolta. Nunca quis vingança. Nunca quis dinheiro ou notoriedade. Busquei justiça, busquei todas as formas possíveis de terapia. Busquei apoio. Pedi socorro. Calei. Aprendi.

Aprendi que assédio não tem lado. Mas a politização das relações infelizmente impede que as mulheres se ajudem na luta contra os assediadores. Muitas mulheres feministas ignoraram meu pedido de ajuda. Foram várias tentativas. Me perguntei muitas vezes: em que ponto chegamos? No caos. Vivemos no caos. Vivemos numa sociedade doente e contaminada por um vírus mortal: a intolerância. Essa intolerância sempre beneficiará agressores. Sempre. E nós, vítimas, seremos cada vez mais e mais e mais… Até que a cura para esse mal surja. Só que não virá pela ciência a cura para esse vírus. Vira pela humanidade. Precisamos humanizar o ser humano.

Quando eu denunciei o assédio que sofri, não sabia o que esperar; sabia que não seria um processo fácil. Nenhuma denúncia é fácil. Ainda mais quando se denuncia um homem branco poderoso que trabalha e vive de eleger políticos! Só que não havia outro caminho senão denunciar. E aprender no caminhar.

Hoje, passados muitos meses da denúncia, nada aconteceu. Provavelmente nada acontecerá com o assediador. E ele, provavelmente, seguirá assediando outras mulheres. A lei permite isso. O sistema permite isso. Então serviu para que minha denúncia?

Me pergunto muito isso. Quase que diariamente. Hoje encontrei uma resposta (que pode não ser definitiva). Eu buscava paz. E paz seria um pedido sincero de desculpas do assediador. Queria que ele entendesse o estrago gigante que ele causou. Queria que tivesse pensado: e se tivessem feito isso com minha filha? Ele tem uma filha. Mas nunca, jamais desejei que a filha dele passasse por algo semelhante para que ele vivesse o que vivi. Não desejo a nenhuma mulher o que passei. É desesperador demais.

O pedido de desculpas que eu queria viria junto da conscientização. Se eu convencesse um assediador a não mais assediar, teria minha justiça. Mas, é claro, ele negou e sugeriu que eu estava desiquilibrada.

Da mesma forma eu esperava que o homem com quem tive uma relação intensa, que quase gerou um filho, tivesse aprendido comigo a viver e sobreviver a tudo isso. Ele negou apoio, negou afeto, negou presença. Sugeriu que a culpa era minha e que eu deveria esperar isso do meu agressor. Eu não queria uma volta ao relacionamento, embora achasse que queria. Eu queria que ele entendesse o que eu estava passando e, junto comigo, vivesse o luto de um aborto espontâneo vivido poucas semanas antes do assédio.

Fui vítima duas vezes seguidas: da dor de um aborto espontâneo e de um assédio (moral e sexual). Uns dirão que é mimimi. É mais fácil minimizar ou “mimimizar” a dor do outro. Se colocar na pele da vítima é mais duro. Exige humanidade.

Cheguei a achar, em certo ponto, que os dois episódios poderiam ser uma punição por erros que cometi. Daí entendi que não. Não existe um Deus que pune. Existe um Deus que cura, que acolhe, que ensina, que não abandona. Um Deus ou vários deuses que nunca nos deixam sós, mesmo quando a gente tá encolhida num canto e perdida.

Preferi curar minha dor no tempo que ela exigiu para isso. Felizmente pude fazer isso. A maioria não pode. Felizmente tenho família e suporte terapêutico. A imensa maioria das mulheres não tem. E ainda assim doeu como se não fosse possível suportar. Não queria mais viver. Não querer viver é triste demais.

O tempo passou. Eu teimei em trabalhar na política. E foi ótimo. Porque vi do que sou capaz. E do que não sou capaz. Descobri a coragem necessária para fazer uma denúncia contra um homem poderoso. Descobri que é importante me reconhecer vítima e frágil. Descobri o poder do tempo.

Descobri que não posso ensinar ninguém a nada. Nem um assediador a deixar de ser esse monstro que ele escolheu ser. Sim, assediar é uma escolha. Não é mais aceitável a desculpa do machismo cultural. É escolha.

Também não posso ensinar um homem progressista a deixar de ser machista. Quem nega um abraço a outra pessoa não parece ter a disposição de aprender, na prática, o que é atuar em defesa da vida. De qualquer vida. Porque toda vida importa.

Enquanto nós, seres humanos, não entendermos que somos iguais e vivemos na mesma casa, a chamada casa comum, não seremos capazes de nenhuma transformação. E se não somos capazes de olhar para o outro e ver um ser humano, com suas fragilidades e limitações, seguiremos sendo vítimas do ódio.

Ódio não tem lado. Assédio não tem lado. Pobreza não tem lado. A luta por direitos e cidadania não tem lado.

Então, como não posso ensinar ninguém sobre nada, que pelo menos minhas palavras façam alguém refletir. Porque foi tudo o que tive direito nesses meses após ser vítima de dois abusos: reflexão.

Não deixei de acreditar no amor. Não deixei de trabalhar no que amo. Teimo e insisto em viver. Porque sobreviver a isso tudo vale a pena. Sucumbir e calar diante da violência praticada há séculos contra mulheres apenas perpetua essas práticas nocivas e nojentas.

Eu não serei, jamais, cúmplice de homens que defendem algumas vidas apenas. Ou de assediadores contumazes que, ao conhecerem as leis, praticam o assédio livremente certos da impunidade. Também não serei cúmplice de um Ministério Público que entende que uma mulher precisa aprender a diferenciar assédio de cantada e entende que um chefe pode chamar uma subordinada de sereia ou insista em levar vinho para ela à noite no seu quarto de hotel.

Honro meus pais. Honro as mulheres da minha família. Honro as mulheres que me inspiram e fazem parte da minha vida. Honro minha existência. Calar seria me tornar cúmplice. E jamais, jamais serei cúmplice de opressores.

Espero que outras mulheres passem a ver as coisas assim. Que denunciem. Que pressionem. Que façam as leis valerem ou mudarem.

Porque no fim do dia, o amor não pode rimar com dor. Amor é amor. E só ele salva.