Desde que decidi ser jornalista, há 25 anos, tenho vivenciado coisas maravilhosas no ofício. Apesar de ter desejado ser correspondente de guerra ou jornalista investigativa, não segui por esse caminho. As primeiras oportunidades que surgiram foram para trabalhar como assessora de imprensa e comunicação na política. Agarrei-as e fui para Brasília para trabalhar na Câmara dos Deputados. Vi que quase tudo acontecia lá. O que não acontecia lá, passava por lá. E tudo aquilo foi me apaixonando. Nunca mais deixei.
Política, muitas vezes, é mais do que ofício, é paixão. Trabalhei integralmente para entregar o melhor que podia. Afinal, era para a sociedade o trabalho que eu fazia. Viajei por boa parte dos estados brasileiros. Trabalhei com partidos de esquerda e direita. Trabalhei com presidente da República, governador, prefeito, deputado, vereador. Trabalhei em campanhas eleitorais, mandatos, governos. Tive oportunidades e convites que poucos têm a sorte de receber e sempre que possível os aproveitava, deixando a vida pessoal de lado para poder, no meu entendimento, ajudar a mudar para melhor a vida das pessoas. O acesso à informação é um direito.
Os anos foram passando e fui percebendo, infelizmente, que nem todos que estão nesse meio deveriam estar ali. Há de tudo. Inclusive gente honesta e disposta a fazer o que acredita ser o melhor para seu país, estado, cidade, bairro, categoria. Só que há, na política, gente disposta a tudo. E pelo poder, as pessoas cegam ou, talvez, se permitam ser quem são de verdade, sem rótulos, sem filtros.
Quando trabalhei com pessoas assim, foi como encarar a realidade que só lia ou ouvia falar, mas que jamais havia vivido ou presenciado. Por isso, quero relatar o que vivi e faço isso porque enquanto calarmos, tudo segue acontecendo do mesmo jeito há séculos. Fui assediada sexual e moralmente.
Meu superior hierárquico, por diversas vezes quis levar vinho no meu quarto de hotel. Recusei todas. Mas em um fim de tarde aceitei sair para conversar porque outra colega iria junto. Ela acabou não indo e ele aproveitou a ocasião para se oferecer, generosamente, para ajudar pessoas importantes para mim a conseguirem trabalho. A generosidade logo se tornou uma tentativa recorrente de invasão. Já não era só vinho que ele oferecia, também me chamava de sereia pelo whatsapp. Pensei muitas vezes se aqueles convites para o vinho teriam sido o real motivo da minha contratação. Eu não era competente o suficiente para estar lá desempenhando meu papel? Será que em algum momento eu havia dado liberdade para aquilo? A velha mania de tentar encontrar na gente o erro, a culpa, a responsabilidade. NÃO!
Chegamos ao auge quando ele se ofereceu, algumas vezes, para me ajudar a tomar banho. Aquilo me destruiu. Nem sei descrever a humilhação que senti. Decidi, então, com inúmeras mensagens de whatsapp registradas, ir à Delegacia da Mulher para fazer um boletim de ocorrência. E foi quando tudo começou a ficar ainda mais violento do que o assédio.
Para o meu assediador, claro, sou desiquilibrada. Foi o que ele disse na polícia e na audiência de conciliação. Para o meu assediador e para todos os assediadores contumazes, a lei é clara: se você não deixar uma prova muito descarada, você pode assediar quem quiser, quando quiser, onde quiser, por quanto tempo quiser. Por quê? Porque a palavra da mulher assediada não vale nada. A hierarquia não foi levada em conta. Os convites inadequados também não. E, pasmem, para o promotor do meu caso no Ministério Público é normal um chefe chamar sua subordinada de sereia. E foi do promotor que ouvi a pior de todas as coisas. Ele me disse que preciso “aprender a diferenciar assédio de cantada”. Concordou que o que vivi foi muito pesado, mas “talvez tenha sido apenas uma nuvem negra sobre minha cabeça”.
Fui assediada. Fui humilhada como profissional. Ouvi de mulheres que trabalhavam comigo e que, mesmo me incentivando a fazer a denúncia, preferiam não se envolver em processos jurídicos. Para terminar, precisei ouvir do promotor que, sem uma gravação, não teria provas. Sem provas, não tem processo. O jeito, então, é aprender a diferenciar assédio de cantada?
Eu mexi com gente grande. Com quem tem poder e acesso a quem tem ainda mais poder. Denunciei tendo fé na justiça e com a esperança de jogar luz em um tema tão importante, afinal, cada vez que contava a história para outras mulheres, todas tinham algo parecido em suas vidas: ou foram assediadas ou conhecem alguma mulher que foi. Não denunciaram por medo, por acreditarem que ficariam marcadas e não poderiam trabalhar mais. O sistema, no fim das contas, justifica essa postura. Mas eu não podia calar. Aquilo estava explodindo dentro de mim.
Não quero ser conivente ou cúmplice de assediadores. É o que fazemos quando calamos. Se vemos uma criança ser abusada e não denunciamos, somos cúmplices. Quando somos assediadas e não denunciamos, também. Estou com dificuldades para acreditar na justiça, nas leis ou nos homens. Mas acredito na vida. Não desisti. Segui trabalhando na mesma área, saindo de casa todos os dias com medo de que tudo aquilo se repetisse. Não se repetiu. E tenho seguido a vida assim, entre medos e sonhos. Mas nunca calada.
Embora eu não possa dar detalhes, pois o promotor entende que não tem prova do assédio nas conversas de celular (aliás, nem sequer pediu meu celular para analisar as mensagens), eu posso dizer a esse promotor: assédio não é cantada, meu senhor. E mesmo que tivesse sido uma cantada, pelo pouco que entendo das leis, um chefe não pode cantar seu subordinado. Ou pode?
Enquanto o sistema não mudar, enquanto as mulheres calarem, novas gerações sofrerão as consequências do assédio. A culpa não é nossa, embora alguns achem que sim. A culpa é sempre do assediador. Talvez também de quem faz as leis e daqueles que as aplicam. Denunciem. Dói. Deixa marcas e cicatrizes. Mas precisa ser feito. Ou admitam-se cúmplices da injustiça e dos criminosos. Assédio não é e jamais será cantada.
Flávia Lima Moreira é Jornalista